Desde o início da pandemia de COVID-19 vemos um aumento considerável nas transmissões ao vivo, não só por músicos e bandas mas também sendo transmitidas em perfis de casas de shows e festivais, que agora, com as regras de distanciamento social, veem neste recurso uma das poucas formas possíveis de se manter em contato com o público. Não só no meio musical, mas canais de notícias, fitness, culinária e esportes tem feito uso massivo desta ferramenta. Até mesmo a Globo entrou na onda, transmitindo a live da Ivete Sangalo.
Duas das plataformas mais populares para a finalidade de transmissão ao vivo são o Instagram e o YouTube. Esta última viu um crescimento de 19% na quantidade de conteúdo transmitido desta forma, de acordo com a consultoria Tubular Labs. O aumento da demanda por lives, ou seja, buscas pelo tema, aumentou em cerca de 4500%, segundo o próprio YouTube, que tem sido o preferido dos grandes artistas do Brasil para a transmissão de seus shows. Muitos acabam fazendo uso massivo de merchandising e quase sempre aliam sua produção à arrecadação de doações para o esforço de combate à pandemia. Parece uma receita de sucesso: a live da dupla Sandy & Junior (que há poucos meses protagonizaram a turnê mais lucrativa da história) arrecadou quase R$ 2 mi em doações. A arrecadação dos artistas com patrocínios não foi divulgada.
#FiqueEmCasa #DePijama
Há, porém, um ponto que aparentemente vem sendo ignorado por muitos “hosts” das lives: a relação do YouTube com os direitos autorais do que é transmitido em seu domínio. Não foi à toa que a dupla viu sua transmissão ser derrubada enquanto cantavam Evidências, com participação de Xororó. No que tange a direitos autorais em lives, as políticas do maior portal de vídeos do mundo são claras: se o algoritmo flagrar, em sua transmissão, qualquer conteúdo marcado com ContentID (ou seja, qualquer música que tenha sido identificada como pertencente a um terceiro), a menos que seu canal esteja na whitelist de quem detém os direitos daquele conteúdo, sua transmissão corre o risco de ser tirada do ar, e não só isso, seu canal corre risco de penalização, que pode ir desde um período sem poder criar novos conteúdo até ao extremo banimento do canal e remoção permanente de todos os vídeos.
Provavelmente, a canção foi flagrada pelo algoritmo (o que não é difícil, já que se tratava do mesmo intérprete da versão de estúdio executando a peça) e a live foi derrubada pelo YouTube. Porém, bastou alguns cliques para que a equipe de A&R da Universal (que atualmente detém os direitos da canção) adicionasse o canal da dupla à whitelist, e o show pode continuar sem problemas. Felipe Araújo passou por problema semelhante em sua live.
Ou seja, mesmo grandes nomes da música brasileira ainda não sabem lidar totalmente com os novos desafios que a era digital traz ao mundo da música.
O que são direitos autorais, quem os detém e qual sua relação com o YouTube
A criação dos direitos autorais (copyright, em inglês) remonta ao século XVII, um esforço para que inventores, artistas e demais trabalhadores intelectuais tivessem a segurança de que seus trabalhos não seriam roubados, apenas sendo reproduzidos após sua devida remuneração pelo esforço criativo – os chamados royaties.
De lá pra cá, após inúmeras emendas e legislações sobre o tema, muita coisa mudou. Foram criados os chamados direitos conexos, que são aqueles reservados às demais partes envolvidas no desenvolvimento de um trabalho de natureza intelectual: patrocinadores ganham uma parcela dos royalties, bem como intérpretes e produtores (falando especificamente de música). Direitos autorais também podem ser comercializados, comprados e vendidos como mercadoria.
Nos dias de hoje, gravadoras, selos e editoras musicais são as donas dos direitos autorais da maioria das músicas mais populares do mundo. Após aquisição do catálogo da EMI em 2018, a Sony Music se tornou a maior detentora de direitos autorais do mundo. Universal e Warner Chappel ficam logo atrás, sendo estas três gravadoras popularmente conhecidas como majors no meio musical. No Brasil, a Som Livre também entra na briga. Obviamente, os próprios artistas também detém uma parcela dos direitos autorais, bem como compositores, produtores e outros membros da cadeia de produção da música.
Como isso impacta o trabalho de um pequeno artista
Cada país tem sua própria legislação para a propriedade intelectual. No Brasil, temos a Lei Nº 9.279, de 14 de maio de 1996 para este fim. Porém, como a maioria das músicas pertence a empresas estadunidenses, a US Copyright Law acaba tendo um grande valor, mesmo fora dos EUA. Há, também, a EU Copyright Directive, cujo artigo 17 versa sobre propriedade intelectual na internet, e sobre a qual vamos falar um pouco mais adiante.
No geral, esses textos legais dizem mais ou menos a mesma coisa, o que, traduzindo para o meio musical, seria algo como: nenhuma obra registrada como propriedade intelectual pode ser executada sem autorização do autor, ou sem o devido pagamento de royalties. A exceção são as obras de domínio público, o que acontece quando o autor não registra sua obra ou após passado um certo tempo da morte do mesmo.
Protesto contra a aprovação do SOPA, um equivalente americano do artigo 17 da lei europeia de direitos autorais
Estas leis também determinam entidades responsáveis pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais. No Brasil, o ECAD – Escritório Central de Arrecadação de Direitos – existe para esta finalidade. Um de seus papéis é fiscalizar estabelecimentos onde acontece reprodução pública de obras musicais – desde casas noturnas com apresentações ao vivo até restaurantes e lojas com reprodução de música mecânica (quando não há um ser humano performando a música) – e cobrar dos mesmos uma taxa relativa à execução das músicas, levando em consideração, dentre outros fatores, a quantidade de pessoas presentes no local e o tempo pelo qual a obra esteve em reprodução. Com isso, é possível conciliar os interesses de pequenos artistas – que dependem de covers para engajar um público ainda a ser conquistado – e dos detentores de direitos, que recebem a garantia de que irão ser pagos pela execução de suas obras por terceiros.
Direitos autorais na internet
Desde 2018, a justiça brasileira reconhece o ECAD como apto a arrecadar do YouTube. Isso significa que a reprodução de vídeo contendo músicas deve gerar receita para quem detém os direitos da mesma. Além disso, o artigo 17 da lei europeia de direitos autorais, de que falamos há pouco, responsabiliza as plataformas digitais pela veiculação de material patenteado em seus domínios. Isso, por sua vez, significa que o YouTube pode ser (e provavelmente será) processado se não possuir regras rígidas de proteção de direitos autorais, dentre as quais destacamos as que levaram abaixo as lives de Sandy & Junior e Felipe Araújo.
Isso é ótimo para as grandes gravadoras, mas coloca pequenos artistas em xeque. Qualquer um que toque um cover em sua live e que seja flagrado pelo ContentID pode ser duramente penalizado – e isso vale tanto para os grandes quanto para os pequenos, como vimos. A diferença é que, para os grandes, é muito mais fácil contornar este problema: basta falar com o executivo da gravadora, algo inimaginável para a legião de artistas independentes que de repente se viram impossibilitados de fazer shows e possuem nas lives sua única forma de manter algum contato com fãs – quiçá alguma receita – enquanto durar a quarentena.
Isso poderá se mostrar um problema grande nos próximos meses, mas há algumas possíveis saídas. Uma delas, altamente improvável, seria alguma espécie de flexibilização nas regras do ContentID mediante o pagamento, pelo artista ou pelo próprio YouTube (seguindo a lógica do ECAD, o YouTube teria o papel do estabelecimento onde é tocada a música – é ele quem paga, não o artista), dos royalties de covers identificados nas lives. Mesmo a facilitação do contato com as grandes gravadoras já seria alguma ajuda. Porém, num cenário de recessão econômica, a chance de qualquer mudança num algoritmo com este papel é praticamente nula.
Sendo realista, o que resta aos pequenos artistas é, agora mais do que nunca, investir em conteúdos autorais. Esta é, hoje, a única forma 100% segura de não sofrer nenhuma penalização em uma transmissão ao vivo.
Sandy & Junior que o digam.
“Caiu?”
Referências
CAVALHEIRO, R. A História dos Direitos Autorais no Brasil e no Mundo. Cadernos de Direito, v1. e1. 2001.